Formas transicionais? Estão todas aí.

Formas transicionais das espécies biológicas são extremamente abundantes no registro fóssil. Milhares de fósseis já foram encontrados e analisados, indicando que sua “idade” (medida por datação isotópica) está perfeitamente de acordo com a “idade” do extrato geológico em que foram encontrados. Desta forma, é perfeitamente factível se estabelecer a ordem dos eventos ocorridos durante a evolução biológica. Existe uma vasta literatura a este respeito. Alguns livros foram inclusive escritos para os não-especialistas neste assunto.1-4

No último número da revista científica Science, da última sexta feira (26-11-2010), foi publicado artigo na seção “Perspectives” sobre alguns tipos de microrganismos que são formas transicionais entre procariontes (organismos unicelulares que não apresentam estruturas intra-celulares definidas por membranas, como o núcleo, complexo de Golgi, mitocôndria, etc.) e eucariontes (organismos uni- e multicelulares, cujas células apresentam estruturas intra-celulares definidas por membranas, como as mencionadas).

Segundo os autores, a identificação da origem da transição entre os procariontes e os eucariontes tem sido um dos assuntos mais debatidos no âmbito da teoria da evolução. Durante a última década surgiram hipóteses denominadas “hipóteses de fusões”, que parecem ter sido seriamente consideradas, embora não de maneira consensual. Várias destas “hipóteses de fusão” propõem que a fusão de dois procariontes justifica a natureza aparentemente quimérica do conjunto genético eucarionte. Outras teorias propõem que os eucariontes e as Archaea compartilham um ancestral que emergiu a partir de uma bactéria. Desta forma, os eucariontes podem ser um mosaico, resultante da combinação de características (inclusive genéticas) herdadas de um ancestral bacteriano em conjunto com aquelas desenvolvidas por um ancestral archea-eucariótico, antes de ocorrer a separação entre eucariontes e bactérias.

Fato muito curioso e intrigante é a existência de um “superFilo” (Filo é um dos níveis hierárquicos de classificação dos seres vivos: Domínio, Reino, Filo, Classe, Ordem, Família, Gênero e Espécie) de bactérias que apresentam características de Archaea e de eucariontes. O que tais organismos incomuns sugerem em termos evolutivos? Uma possibilidade é que seu ancestral tenha servido como um “caldeirão” para a evolução das características dos eucariontes e das Archaea, e que tal “superFilo” é um indicador de uma rota de etapas intermediárias entre tal ancestral e um ancestral archea-eucariótico.

Os Filo Planctomycetes, Verrumicrobia e Chlamydiae (designado “superFilo” PVC5) é uma mistura de Filos de bactérias Gram-negativas que é considerado monofilético (com uma única origem comum) em várias árvores filogenéticas, determinadas por comparação de sequências genéticas. Algumas destas bactérias apresentam características genéticas e moleculares que são incomuns para bactérias, mas são características de eucariontes e Archaea (ver quadro a seguir). Tal mistura de fenótipos nos membros pertencentes ao Filo PVC traz à discussão a hipótese de que estes microrganismos estejam relacionados a formas intermediárias da origem eucarionte e Archaea. A análise desta mistura de fenótipos pode servir de ponto de partida para se saber se tais características se originaram em um ancestral relacionado ao “superFilo” PVC, a partir do qual o ramo Archaea e eucariótico se originou.

Duas etapas principais na evolução dos eucariontes e das Archaea são: a perda da parede celular constituída por petidoglicanas nas bactérias, e a substituição da proteína FtsZ, que forma o citoesqueleto bacteriano, pela tubulina. Os membros do “superFilo” PVC são “intermediários” em ambos eventos. Alguns membros deste superFilo sintetizam peptidoglicanas (Verrucomicrobia), enquanto outros não (Planctomycetes e Chlamydiae). A informação genômica indica que o último ancestral comum das bactérias PVC apresentam um mecanismo de divisão celular baseado na proteína FtsZ. No entanto, Chlamydiae e Planctomycetes não codificam a síntese desta proteína nos seus respectivos genomas. As espécies do gênero Prosthecobacter (do Filo Verrucomicrobia) apresentam genes que codificam tanto a síntese de FtsZ como da tubulina.

Características do superFilo PVC. Este superFilo apresenta características encontradas nos eucariontes (Eu) e nas Archaea (Ar). Cada particular característica é encontrada em pelo menos um membro indicado em cada um dos Filos bacterianos. Methanobacteriales constituem uma Ordem dentro dos Euryarchaeote que apresentam pseudopeptidoglicanas que diferem das peptidoglicanas das bactérias (*). FtsZ está presente na divisão Archaea principal de Eryarchaeota e ausente em crenarchaeota (**). Floração (Budding) também ocorre em Proteobacteria (***). Planctomycetes (Pl), Verrucomicrobia (Ve), Chlamydiae (Cl).

O desenvolvimento do sistema endo-membranário, que compartimentaliza o citoplasma das células, foi essencial para o surgimento dos eucariontes, mas sua origem ainda é misteriosa. Porém, tudo indica que este sistema tenha surgido como resultado da internalização do periplasma de bactérias Gram-negativas, através da invaginação da membrana interna das bactérias. As morfologias das membranas observadas nos membros do Filo PVC são intermediárias. O seu periplasma é comumente maior e com uma organização mais complexa do que o periplasma bacteriano. Esta organização é sustentada por proteínas que podem estar relacionadas àquelas do sistema endo-membranário dos eucariontes. Os parifoplasmas das bactérias PVC podem mostrar as variações evolutivas intermediárias a partir do periplasma bacteriano para o sistema endo-membranário dos eucariontes.

A internalização do periplasma pode indicar um cenário plausível para a aquisição dos precursores da mitocôndria pelos eucariontes. De acordo com a hipótese da endossimbiose (Margulis), a simbiose e o parasitismo permitiriam uma adaptação progressiva de ambos hóspede e hospedeiro, já que alguns simbiontes ou parasitas microbianos chegam a residir no periplasma do hospedeiro. Através da internalização do periplasma, tais hóspedes residiriam no lúmen das membranas internalizadas.

Assim, considera-se que as bactérias do “superFilo” PVC são muito intrigantes, e sua posição filogenética na árvore da vida ainda não está estabelecida. Embora as características destas bactérias possam ser resultantes de transferência lateral de genes, ou de convergência, ou de um ancestral universal complexo, sua natureza intermediária pode ser considerada em um cenário mais parcimonioso (minimamente complicado). Cenários evolutivos adicionais são passíveis de serem descobertos – e objeto de debates – à medida em que mais bactérias e Archaea forem sendo descobertas e caracterizadas. Apesar da divisão entre os três domínios da vida (Bacteria, Archaea e Eukaryota) ainda ser a norma, o “superFilo” PVC pode ser uma continuidade entre estes três domínios, tornando mais difícil a distinção destes.

Com tantas evidências de que a diversidade biológica resulta de uma grande bagunça evolutiva, fica cada vez mais difícil encontrar e justificar possíveis sinais de inteligência neste processo.

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Devos, D., & Reynaud, E. (2010). Intermediate Steps Science, 330 (6008), 1187-1188 DOI: 10.1126/science.1196720
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Tawfik DS (2010). Messy biology and the origins of evolutionary innovations. Nature chemical biology, 6 (10), 692-6 PMID: 20852602

Referências

1. Coyne, J. A., Why Evolution is True, Viking-Penguin Group, Canadá, 2009.

2. Lewin, R., Patterns in Evolution – The New Molecular View, Scientific American Library, 1997.

3. Gould, S. J., editor, The Book of Life, W. W. Norton & Company, Inc., 2001.

4. Zimmer, C., Evolution – The Triumph of an Idea, Harper Collins Publishers, 2001.

5. Nada a ver com o polímero poli-cloreto de vinila, do inglês poly-vinylchloride (PVC), utilizado para fabricar tubos e conexões Tigre.

6. Fonte da foto Verrucomicrobia.jpg : http://bit.ly/f0JO5F
7. Fonte da foto Planctomycetes.jpg : http://bit.ly/h6ZHPa
8. Fonte da foto Chlamydiae.gif : http://bit.ly/hz4VuX



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