Produtos naturais arseno-orgânicos

A descoberta da bactéria GFAJ-1, cujo metabolismo depende de arsênico mas não de fósforo, causou um enorme rebuliço na mídia. Hoje de manhã a notícia foi divulgada no jornal “Bom Dia Brasil” da Rede Globo como uma das descobertas mais importantes dos últimos tempos sobre os seres vivos.

Porém, a ocorrência de substâncias contendo arsênico em diferentes organismos vivos é conhecida há já algum tempo. Antes de 1977 já se sabia que os organismos marinhos apresentavam níveis de arsênico muito maiores do que organismos terrestres. Mas até 1981 somente três substâncias químicas arseno-orgânicas haviam sido descobertas: o ácido metilarsônico, o ácido dimetilarsínico e a arsenobetaína. Em 1977 foi descoberta a arsenobetaína, isolada da lagosta Panulirus cygnus, e identificada por análise por difração de raios-X. A arsenobetaína já era conhecida desde os anos 1930 como substância sintética. Subsequentemente a arsenobetaína foi obtida a partir de esponjas marinhas, cnidários, moluscos gastrópodes e cefalópodes, equinodermas, crustáceos, peixes e tubarões. A mesma lagosta Panulirus cygnus também apresenta fosfatidilarsenocolina nos seus tecidos.

Algas marinhas de diferentes espécies contém substâncias arseno-orgânicas. Já em 1922 A. J. Jones estudou algas da espécie Fucus e Chondrus crispa, e demonstrou que estas continham altas concentrações de arsênico. O ácido metilarsônico e o ácido dimetilarsínico foram isolados da alga Hizikia fusiforme, tradicionalmente utilizada na culinária japonesa. Esta alga é vendida desidratada, e seu preparo consiste simplesmente na reidratação em pequena quantidade de água, a qual deve ser bebida (e nunca descartada) por conter uma grande quantidade e variedade de sais minerais extremamente raros. Após a reidratação, a alga hijiki pode ser adicionada a saladas ou preparada junto com queijo de soja (tofu) refogado e temperado com molho de soja (shoyu). Outro prato muito apreciado pela culinária japonesa é raiz de bardana (Arctium lappa), também conhecida por gobô, refogada e temperada com shoyu ou missô e alga hijiki.

Arsenoglicosídios e arsenoglicolipídios foram isolados da alga marinha Ecklonia radiata, do mexilhão gigante da Austrália Tridacna maxima, da mesma alga Hijikia fusiforme, também da alga Laminaria japonica e de outras algas como Sargassum thunbergii, Undaria pinnatifida, Chaetoceros concavicornis, Sargassum lacerifolium, Codium fragile e Porphyrum tenera. Também derivados de nucleosídeos contendo arsênico foram isolados de organismos marinhos.

As concentrações de arsênico na água do mar variam de região para região, e também de acordo com a profundidade. Águas mais rasas apresentam menores concentração de arsênico. O oceano da Antártica apresenta maiores concentrações da forma As(V) e também de arsênico inorgânico. Já o oceano Pacífico apresenta maiores concentrações de As(III). A ocorrência de “arsênico orgânico” livre, na forma de substâncias arseno-orgânicas, é em concentração muito menor. Muito provavelmente estas se encontram associadas aos organismos supra-citados.

Substâncias arseno-orgânicas apresentam distribuição muito mais restrita em organismos do ambiente terrestre, tendo sido encontradas em plantas, líquens e fungos.

Resta saber se as substâncias arseno-orgânicas são realmente produzidas (biossintetizadas) por macro-organismos, ou são, na verdade, formadas por micro-organismos simbiontes. Na verdade, a notícia divulgada amplamente na mídia mostra um mau-entendimento da razão pela qual existe uma bactéria que depende de arsênico, e não de fósforo, para sobreviver. Se o ambiente em que esta bactéria surgiu como espécie apresenta uma forte deficiência em fosfato e outros sais de fósforo, e muito mais sais de arsênico, o metabolismo desta bactéria simplesmente se adaptou ao ambiente. Desta forma, tal espécie surgiu em decorrência de uma forte pressão seletiva, que a tornou capaz de sobreviver em um ambiente nutricionalmente único. A descoberta confirma, mais uma vez, que a seleção natural é inexorável, até mesmo em nível (bio)químico.

Leia mais sobre este assunto no blog Gene Reporter de Roberto Takata e no formspring Evolucionismo de Eli Vieira.

Fonte da foto: http://bit.ly/hjnW0d

Para referências bibliográficas, veja aqui e o artigo a seguir.

ResearchBlogging.orgDEMBITSKY, V., & LEVITSKY, D. (2004). Arsenolipids Progress in Lipid Research, 43 (5), 403-448 DOI: 10.1016/j.plipres.2004.07.001



Categorias:ciência, química

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8 respostas

  1. Bem, na verdade não é que a GFAJ-1 não precisa de fósforo mas de arsênico. Li o artigo original, e em cultura as cepas PODEM crescer e se reproduzir na presença de arsênico e na ausência de fosfóro. Entretanto, a bactéria prolifera com melhor eficiência em meio contendo fósforo (e na ausência de arsênico), portanto aparentemente ela ainda tem preferência por fosfato.

    O estudo mostra bons indícios que o fosfato é substituído por arsênico inôrganico nas moléculas biológicas qdo o fosfato é removido do meio, mas isso não foi demonstrado diretamente. Ainda precisa outras análises químicas pra isso e acho que não vai demorar muito pra surgir. A explicação mais óbvia é o que vc colocou aqui: pressão seletiva. Não entendo muito desta parte de toxicidade, mas acredito que o arsênico inorgânico e similares são tóxicos justamente por inibição competitiva dos sítios de ligação das moléculas que tem afinidade por fosforilas.
    Não é assim surpreendente que possa ter ocorrido esta adaptação ambiental pelos processos de pressão seletiva já conhecidos, e as reações que acoplam geralmente fosfato nas células pôde de alguma maneira aceitar o arsênico inorgânico. O mais inesperado é imaginar a ampla gama de adaptações dessa mudança. Não só no DNA os fosfatos são importantes, mas em diversas outras moléculas essenciais do metabolismo, Acetil CoA, NADH, etc e, especialmente, ATP. O ATP é o mais intrigante, pq há um número enorme de processos dirigidos por ATP (bombas dependente de ATP, biossíntese, regulação por fosforilação) e outras proteínas ATPases e é incrivel que nesse organismo basicamente todas essas milhares de ATPases aceitem arsênico inôrganico. Ou seja, podem ser proteínas “ATAses” e os processos são de “arsenilação” (me corriga se a nomenclatura estiver errada!) e não ATPases e fosforilação! É incrível pensar dessa perspectiva..

    De qualquer forma essas possibilidades são há bastante tempo especuladas.

    • Oi Erico,

      Ahá! Eu não li o original. Mas isso que você conta é extremamente interessante. Então, na verdade a bioquímica da bactéria é flexível, e não “exclusivista”. É interessante se pensar em termos de reatividade do arsênico com relação ao fósforo, e deste com relação ao nitrogênio. Compostos nitrogenados usualmente são bases e nucleófilos. Compostos fosforados podem ser nucleófilos ou eletrófilos, dependendo de seu estado de oxidação, mas são menos usados como bases do que como nucleófilos. O arsênico (ou arsênio) deve apresentar comportamento químico similar ao fósforo, da mesma forma que o bromo apresenta comportoamento químico similar ao cloro. O que é interessante é que o arsênico é um semi-metal.

      O fato que você aponta é muito pertinente. Porém, a forma em que os grupos fosfato se encontram nas moléculas biológicas (fosfato) é a mesma em todas. Resta saber se na tal bactéria o arsênico substitui todo o fosfato, inclusive do ATP.

      Já li especulações de se encontrar formas de vida tendo por base átomos de silício em vez de carbono e amônia em vez de água. Quem sabe?

  2. “Resta saber se na tal bactéria o arsênico substitui todo o fosfato, inclusive do ATP.”

    Aparentemente sim. Nas cepas que sobreviveram em meio ausente de fósforo, só foi encontrado traços do elemento e os autores colocam que “Our NanoSIMS analyses, combined with the evidence for intracellular arsenic by ICP-MS and our radiolabeled 73AsO4 3-experiments demonstrated that intracellular AsO4 3- was incorporated into key biomolecules, specifically DNA” e “These data also indicated evidence for the presence of arsenate in small molecular weight metabolites (e.g., arsenylated analogs of NADH, ATP,glucose, acetyl-CoA) as well as arsenylated proteins where arsenate would substitute for phosphate at serine, tyrosine and threonine residues”.

    Quanto à sua outra questão, mês passado mesmo li um paper relativo à esta possibilidade: vida baseada em silício. Apesar da minha ignorância em química, e do fato do artigo ser basicamente um modelo mental (ainda que fundamentado experimentalmente), me pareceu plausível. O título é “Many Chemistries Could Be Used to Build Living Systems”, vc podia comentar depois aqui no blog!

    Abraço

  3. O artigo foi publicado na Astrobiology. Acesso direto pro paper aqui: http://www.ifa.hawaii.edu/~meech/a281/handouts/Baines_astrobio04.pdf

  4. Olá Roberto,

    Esse artigo relata o estudo das reações de sais de N-fluoropyridinium com nucleófilos contendo arsênico e fósforo. De acordo com os autores, a direção da reação depende da natureza do grupo R dos compostos PR3 e AsR3.

    Clique para acessar o science

    Abraço,
    Eduardo.

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