A maltratada costa do Brasil

João Lara Mesquita navegou durante dois anos pela costa brasileira, documentando paisagens e territórios, culturas e tradições de um país que tem longa história na sua região costeira. Doze capitais de estados brasileiros estão situadas junto ao Atlântico. Mesmo assim, a costa e o mar brasileiro são objeto de certo “esquecimento” do poder público e, segundo Mesquita, também da mídia (Tendências & Debates, Folha de São Paulo, 2/5/2012).

A costa do Brasil passa por desventuras desde 1500. Que se iniciaram pela exploração extrativista, e continuou pela ocupação desordenada. Hoje, a falta de uma gestão moderna, que valorize e aproveite os recursos que a costa oferece, dentre os quais se sobressai a beleza, infelizmente compromete as paisagens litorâneas e estimula a especulação imobiliária e ocupação desordenada nas localidades praieiras do Brasil.

Mesquita publicou trabalho magnífico de documentação e divulgação da costa em sua obra “O Brasil visto do Mar Sem Fim” (2 volumes), que complementa o seminal “Litoral do Brasil”, de Aziz Ab’Saber. Além destes, muitos outros estudos publicados sobre nossa costa ilustram sua importância. Logo, não é por falta de pesquisa ou documentação, mas quase que por opção, que o poder público minimizou, durante 500 anos, o valor da costa brasileira.

Exemplo disso retrata a reportagem de Eduardo Geraque no jornal Folha de S. Paulo de 8/3/12 (http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/1058845-guaruja-tem-70-das-praias-consideradas-improprias-para-banho.shtml), mostrando que 70% das praias do Guarujá estavam impróprias para banho devido à ocorrência de altas concentrações de coliformes fecais. Figuravam nestas praias algumas das mais frequentadas por turistas, como Perequê, Astúrias e Guaiúba. As condições impróprias se devem tanto ao esgoto clandestino como a chamada poluição difusa, que se origina da sujeira transportada por chuvas para o mar. Segundo a Sabesp, apesar de existir rede oficial de esgoto, 37% das residências do Guarujá não têm conexão à rede.

Infelizmente o quadro do Guarujá não é uma exceção ao longo do litoral brasileiro, com algumas áreas de grande concentração populacional. No litoral norte do estado de São Paulo, onde ocorrem condomínios de alto padrão, certas praias estão quase que inutilizadas para o banho durante boa parte do ano. Por exemplo, a Barra do Sahy, para a qual é levado o esgoto de boa parte das casas, pousadas e restaurantes, como também da vizinha praia da Baleia, descartado no Rio Sahy. Grandes cidades, como o Rio de Janeiro, Salvador, Recife e Fortaleza, entre outras, também apresentam algumas praias impróprias para banho em determinados períodos do ano. Ainda parece prevalecer uma cultura de se considerar o mar como um imenso esgoto – inclusive pela população – subestimando-se a necessidade de bem cuidar das diversas cidades costeiras e praias turísticas.

Outra reportagem recente (26/4) da mesma Folha de São Paulo relatou a descoberta da maior extensão de algas calcárias do mundo, na região de Abrolhos, litoral sul da Bahia. O Parque Nacional de Abrolhos, um dos mais ricos de biodiversidade do País, está próximo de local em que está prevista a instalação de porto para escoar produção agrícola e de minérios por linhas férreas, região em que cresce a ocupação mal planejada e onde manguezais costeiros se tornarão vulneráveis se o novo código florestal for sancionado pela presidente Dilma, facultando a implantação de fazendas de cultivo de camarões. Desta maneira o Brasil fica em posição desfavorável para cumprir sua responsabilidade na manutenção dos ecossistemas marinhos costeiros e da sua biodiversidade marinha.

A má gestão da costa do Brasil não é apenas prejudicial ao ecossistema e diversidade marinhos, mas também à exploração econômica dos recursos naturais marinhos e ao próprio turismo local, regional e nacional. A importância do ambiente marinho é cada vez mais evidente, tendo recebido atenção na elaboração do documento que servirá de base para a discussão na Conferência “Rio+20”, o chamado “The Future We Want – Zero draft of the outcome document” (http://www.uncsd2012.org/rio20/index.php?menu=144). Os parágrafos 78 até o 86, e o 107, tratam de temas como a conservação, o gerenciamento sustentado e a importância econômica dos recifes de corais e estados (países costeiros). Indica-se a necessidade do apoio ao “Processo Regular de Avaliação Marinha Global” (the Regular Process for the Global Marine Assessment), para formular políticas oceânicas nacionais, continentais e globais. Ressalta-se a importância de estudar problemas relacionados à conservação e uso sustentado da biodiversidade marinha em águas que vão além das jurisdições nacionais. Convoca os países a adiantar a implementação do Programa de Ação Global para a Proteção do Ambiente Marinho, inclusive em relação às atividades realizadas em terra, incluindo o investimento no tratamento de dejetos humanos e aquíferos, e o combate à poluição marinha. Propõe a implementação de uma rede de observação internacional da acidificação dos oceanos, uma questão premente gerada difusamente pelo efeito estufa.

Chama atenção à importância da manutenção e restauração dos limitados estoques pesqueiros para níveis sustentáveis, e para o combate à pesca ilegal, não documentada e sem regulamentação. Reafirma que os Países em Desenvolvimento de Pequenas Ilhas continuem a ser considerados como casos à parte para o desenvolvimento sustentado, levando-se em conta suas vulnerabilidades únicas. E recomenda que as Metas de Desenvolvimento Sustentado incluam o consumo sustentável e padrões de produção, e que, neste quadro, os oceanos sejam considerados prioritários.

A importância do ambiente marinho, em particular o costeiro, profundamente afetado pelas atividades humanas, não pode mais ser ignorada. A biodiversidade marinha constitui a base da vida no planeta Terra, pois a fração de oxigênio gerada pela fotossíntese do ambiente marinho ultrapassa a da fração terrestre. Os recifes de corais, extremamente sensíveis a variações de temperatura e acidificação oriundas do aquecimento global, bem como sujeitos a impactos significativos decorrentes de desastres naturais e de atividades humanas, são verdadeiros reservatórios de vida imprescindíveis para a reprodução do pescado e manutenção da diversidade da vida marinha. A recente descoberta de centenas de novas espécies de animais, plantas, bactérias, fungos e vírus que são exclusivos do ambiente marinho demonstra o longo caminho de conhecimento que a ciência ainda precisa percorrer sobre este ambiente, que cobre mais de 70% da superfície terrestre. É imprescindível se estabelecer compromissos eficazes, que resultem em ações efetivas e duradouras para a manutenção saudável do ambiente natural dos oceanos, de maneira a que seus recursos possam continuar a ser explorados, porém de forma racional e equilibrada.

No Brasil, um primeiro passo necessário é a melhoria do modelo de desenvolvimento e gerenciamento do ambiente costeiro, principalmente aquele das grandes cidades e regiões costeiras expostas à intensa atividade humana. A construção e manutenção de redes de tratamento de esgotos, racionalização da ocupação, o monitoramento de ações que geram resíduos, poluição e causam degradação, bem como a exploração e ocupação do ambiente litorâneo, devem ser regulamentados, de maneira a que o Brasil possa resgatar seu patrimônio costeiro e contribua de maneira efetiva para a manutenção da biodiversidade e dos recursos marinhos. Qualquer projeto de desenvolvimento que não considere estas premissas poderá levar a um sério comprometimento da qualidade de vida ao longo da costa brasileira.

Artigo de autoria do Antonio Carlos (Tim) Marques e minha, publicado na edição de sexta feira, 4/5/2012 do JC-email (veja aqui).



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